Série: Descobrindo o Japão - Bem-vind@ as Black Companies: o lado mais sobrio e perverso do trabalho no país
Elas violam leis, esgotam seus funcionários e ainda recebem prêmios por isso. Mergulhe no universo das black companies — o lado mais sombrio do trabalho no Japão.
Se a cultura de trabalho japonesa já é conhecida por exigir esforço e dedicação extremos, existe um lado ainda mais pesado — e, muitas vezes cruel — dentro dessa engrenagem. São as chamadas Black Companies (ブラック企業, burakku kigyō): empresas que não apenas desafiam os limites da ética corporativa, como violam leis trabalhistas, exploram os limites dos funcionários e esgotam corpo, mente e alma de quem veste o uniforme.
Quando comecei a pesquisar sobre a cultura de trabalho no Japão, eu já esperava encontrar dedicação extrema, longas jornadas e uma ética rígida. Mas, em meio a artigos, entrevistas e relatos de quem vive essa realidade por dentro, me deparei com algo ainda mais pesado: as chamadas Black Companies. Empresas que não só ignoram a legislação, mas transformam o local de trabalho em um ambiente tóxico, abusivo e, em muitos casos, devastador.
Neste artigo, vamos mergulhar no universo dessas empresas malévolas! De onde surgiu o termo,
como elas funcionam, por que ainda são tão comuns no Japão e quais
são os sinais de alerta. Um retrato sombrio — mas necessário — de um país
conhecido por sua disciplina, que esconde, em muitos casos, um ambiente de
trabalho onde os limites humanos são ignorados.
O que são Black Companies — e por que esse nome tão pesado?
Você já ouviu falar em empresas
que viram praticamente um segundo lar... só que no pior sentido possível? No
Japão, essas empresas têm até nome próprio: são chamadas de Black Companies
. O apelido, que começou a
circular em fóruns da internet no início dos anos 2000 entre trabalhadores de
TI, faz jus ao que representa: ambientes corporativos onde a escuridão
ultrapassa o horário de expediente.
O nome pode até soar dramático — “empresa preta” — mas ele surgiu justamente pra traduzir o que essas corporações escondem por trás do crachá: horas extras não pagas, assédio de todo tipo, férias negadas e uma cultura de silêncio que sufoca qualquer tentativa de denúncia. Tudo isso acontece com tanta naturalidade que, muitas vezes, os próprios trabalhadores não percebem o quanto estão sendo explorados.
Para você ter uma ideia do assédio ao qual os funcionários são impostos, aqui está um vídeo de um treinamento de integração em uma Black Company (entre os minutos 12:10 e 18:35) onde os novos funcionários são forçados a gritar uns com os outros, recitar frases de lealdade à empresa e participar de dinâmicas psicológicas abusivas — tudo isso no primeiro dia de trabalho. Um verdadeiro ritual de submissão.
Obs. Recomendo assistir ao vídeo inteiro, é um verdadeiro retrato da cultura de trabalho japonesa, e foi uma das minhas principais inspirações para começar a escrever sobre a cultura de trabalho no Japão.
Continuando, o termo ganhou visibilidade nacional em 2013,
quando o próprio Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar do Japão
passou a monitorar corporações suspeitas de abusos sistemáticos, principalmente
contra jovens em início de carreira. Naquele mesmo ano, “black company” foi
eleita uma das palavras do ano no Japão.
Essas empresas não são apenas casos isolados. Uma pesquisa revelou que 38,6% dos trabalhadores japoneses já foram colaboradores — ou ainda trabalham — em empresas com essas características. Ou seja, o problema está longe de ser pontual.
Quando a lei vira enfeite: as condições reais dentro das Black Companies
Pelas regras formais, o
expediente no Japão deveria durar no máximo 8h por dia, 40h por semana,
com direito a férias anuais remuneradas e pelo menos um dia de folga semanal.
Isso é o que diz a Lei de Normas Trabalhistas Japonesa. Mas, dentro das Black
Companies, essa legislação vira quase um detalhe decorativo.
Nessas empresas, é comum que os
funcionários ultrapassem 80 horas extras por mês — muitas vezes sem
qualquer pagamento adicional, ou com o velho argumento de que “já está incluso
no salário”. Há casos em que nem as férias remuneradas, que deveriam ser um
direito a cada seis meses de trabalho, são respeitadas. Em alguns ambientes, pedir
folga é visto como fraqueza ou deslealdade à empresa.
Além disso, essa reportagem da Tokhimo mostra em detalhes que o assédio é praticamente institucionalizado. Termos como pawa hara (assédio de poder), seku hara (sexual), morahara (moral), aruhara (por álcool) e matahara (por maternidade) fazem parte do vocabulário comum entre os funcionários.
A própria plataforma Izanau destacou que muitas dessas empresas operam à margem da lei, camuflando abusos sob o pretexto de “cultura corporativa”. Nessa matéria, são comparadas as normas legais com as práticas exploratórias das Black Companies (vale a leitura!)
O mais grave é que, mesmo diante de práticas tão abusivas, as punições legais são raras e leves. Segundo o post do blog GaijinPot, a fiscalização é escassa e os funcionários têm medo de denunciar por causa dos custos, da burocracia e do risco de prejudicar suas carreiras. O resultado? Um ciclo que se repete — e que, em alguns casos, leva até ao karōshi, a temida morte por excesso de trabalho (no próximo artigo vou aprofundar esse tema. Mas já aviso: não é pra quem se abala fácil.)
O prêmio mais cruel do Japão: "Black Company Awards"
No Japão, existe — ou melhor, existia — um prêmio dedicado
às empresas mais abusivas do país. Sim, você leu certo! Em 2012, advogados,
jornalistas e ONGs criaram o comitê do “Most Evil Corporations Award”
(Prêmio das Empresas Mais Malvadas), com o objetivo de dar visibilidade às
corporações com as piores práticas trabalhistas.
Todos os anos, os organizadores
reuniam denúncias e indicadores para montar uma lista das candidatas ao infame
título de Black Company of the Year. A votação
era aberta ao público e o evento tinha até cerimônia, onde as empresas
“vencedoras” recebiam como presente uma cópia impressa da Lei de Normas
Trabalhistas. Nenhuma, claro, jamais apareceu para buscar o troféu (que surpresa!).
Agora segura essa bomba! Em 2019, o primeiro lugar foi entregue à Mitsubishi Electric Corporation, acusada de manter práticas abusivas mesmo após casos públicos de karōshi (morte por exaustão) e diversas denúncias internas.
O prêmio foi suspenso em 2020,
principalmente por causa da pandemia e da sobrecarga de denúncias — mas sua
existência, mesmo que breve, escancarou uma realidade que muitas vezes ficava
escondida sob o verniz do profissionalismo japonês.
Extra! Pra você ter uma ideia do que é "trabalhar" em uma Black Company, aqui está um vídeo que
mostra essa realidade obscura! Assista as “5 piores empresas para se trabalhar no Japão”.
Black, White e o meio do caminho: o espectro das empresas japonesas
Nem toda empresa abusiva grita “exploração” de cara. Algumas até oferecem café grátis e ambiente silencioso — mas escondem a falta de apoio, crescimento e reconhecimento. No Japão, esse universo corporativo é muitas vezes descrito como um espectro que vai do branco ao preto, com uma zona cinzenta bem confusa no meio. São elas:
- As chamadas White Companies, que são o ideal: empresas onde existe equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ambiente saudável, licença remunerada respeitada e satisfação no trabalho. São a minoria, mas existem — e vêm ganhando espaço, principalmente entre os mais jovens.
- Já as Black Companies, como vimos até aqui, operam no “modo sobrevivência ativado”: longas jornadas, assédio, medo, rotatividade alta. Funcionários entram e saem como se fosse porta giratória — e saem, muitas vezes, exaustos.
- Mas o mais curioso são as Yuru Black Companies (“yuru” = “leve”). São empresas que, à primeira vista, parecem tranquilas: sem cobrança abusiva, sem assédio direto, sem horas extras absurdas. Mas... também não tem orientação, nem desenvolvimento, nem motivação. Os gestores têm tanto medo de parecer autoritários que não cobram, não ensinam e não guiam. Resultado? Funcionários perdidos, desmotivados, e uma rotina de trabalho que mais parece um eterno “empurra com a barriga”.
Essa classificação — proposta por institutos de pesquisa japoneses — mostra que o problema não é só trabalhar
demais. Às vezes, é não conseguir crescer, se desenvolver ou até mesmo
entender o seu papel dentro da empresa.
Como identificar uma Black Company — e onde buscar empresas mais “humanizadas”?
A essa altura, você já deve estar
pensando: “Ok, mas como eu identifico uma dessas empresas antes de cair numa
cilada?” Boa pergunta. E a verdade é que não é nada fácil — especialmente no
Japão, onde o silêncio corporativo e a valorização da lealdade à empresa podem
mascarar muitos dos abusos.
De acordo com essa reportagem do site nippon.com, essas são as maneiras mais frequentes de identificar quando uma empresa é tóxica:
Porém, nos últimos anos, plataformas
de avaliação começaram a ganhar força no país. Funcionam como um “Glassdoor
japonês”, com comentários anônimos de funcionários e ex-funcionários que expõem
a realidade por trás das fachadas corporativas. Algumas delas são:
- Hyōuban: uma das plataformas mais usadas no Japão para avaliar empresas. É a maior do país, conta com avaliações de mais de 220 mil companhias por mais de 30 milhões de funcionários e antigos colaboradores. Além disso, exibe dados como média salarial, horas extras mensais e notas de satisfação geral.
- Tokhimo Jobs: além de oferecer vagas para talentos multilíngues, verifica se as empresas são confiáveis antes de listá-las. Tem também a Tokhimo Review, focada em diversidade e bem-estar no trabalho.
- Guidable Jobs: além de vagas, tem uma seção só sobre como identificar Black Companies e fugir delas.
Esses sites não resolvem o
problema, mas ajudam a iluminar onde antes havia só silêncio. E talvez
esse seja o primeiro passo para que mais empresas deixem de lado o “preto” — e
comecem a tratar seus funcionários com o respeito que eles merecem.
Obs.: Essas plataformas são uma excelente forma para você ficar por dentro do que acontece atualmente no mercado de trabalho do Japão, caso queira procurar um trabalho por lá! Por sinal, os salários lá são muito altos! Porém, de acordo com esse vídeo super interessante, muitos japoneses ainda demonstram certa relutância em trabalhar com estrangeiros, por motivos culturais e sociais que valem ser entendidos!
Pra refletir (e respirar!)
Escrever sobre esse tema me
deixou com o coração apertado em vários momentos. Porque por trás dos números e
das expressões em japonês difíceis de pronunciar, existem pessoas. Gente
como eu, como você. Que só querem trabalhar, crescer, contribuir — e acabam
presas em um sistema que exige demais e oferece de menos.
A cultura de trabalho no Japão é
fascinante, sim. Mas também carrega sombras que não podem mais ser ignoradas.
E no próximo artigo da série,
vou justamente falar sobre as consequências de tudo isso:
- Os impactos emocionais e físicos desse ambiente tóxico. Aqui vai um exemplo: o Japão é o país com a maior porcentagem de Síndrome de Burnout do mundo: 70% dos japoneses sofrem disso!
- O assustador fenômeno do karōshi (morte por excesso de trabalho). Spoiler: diversas pesquisas trazem o chocante número de mais de 10.000 mortes anuais!
- E a tentativa recente de “humanizar” os colaboradores dentro das empresas por
meio do curioso movimento chamado Ruikatsu, onde funcionários são estimulados
a chorar junto com colegas para aliviar o estresse do cotidiano empresarial (assistindo vídeos tristes e recitando poesias! Imagina você participando de uma dinâmica assim?)
Até lá, fica o convite pra olhar com mais carinho o seu próprio ritmo. O trabalho pode (e deve) ser um espaço de crescimento. Mas nunca de adoecimento! No Brasil, 30% dos trabalhadores sofrem da Síndrome de Burnout, sendo o segundo país do mundo com o maior número de casos!
Portanto, nosso bem-estar precisa estar sempre em primeiro lugar. Respeitar nossos limites e impor fronteiras claras no trabalho é um passo necessário para uma vida equilibrada e saúdavel (principalmente se não quisermos ultrapassar os japoneses nesse triste ranking.) E depois de aprender sobre os abusos descritos desse texto, fica difícil não pensar: o que podemos fazer, de fato, para melhorar nossa qualidade de vida no trabalho e para impor os limites necessários para alcançar o sucesso sem abrir mão de nós mesmo?



Comentários
Postar um comentário