Série: Descobrindo o Japão - Karōshi: Morte por Excesso de Trabalho

 

“Estou no trabalho 20 horas por dia e já não sei mais por que estou vivendo.”

Matsuri Takahashi, logo antes do seu suicídio por karōshi.

Trabalhar até morrer. Essa foi a triste realidade de Matsuri, uma jovem de 24 anos, que se suicidou após tanta pressão moral e psicológica provocada por seu trabalho; o caso acabou se tornando o mais icônico do Japão (mais detalhes ao longo do artigo). Infelizmente, esse também é o caso de milhares de japoneses: o karōshi (過労死), ou seja, morte por excesso de trabalho.

O termo surgiu em 1978, referindo-se ao crescente número de pessoas sofrendo de ataques cardíacos e AVC fatais atribuídos ao excesso de trabalho; no entanto, somente em 1982 o Ministério da Saúde publicou um relatório utilizando o termo pela primeira vez. Já o primeiro caso reportado no país ocorreu muito antes, em 1969, quando um jovem de 29 anos sofreu um derrame após diversos turnos consecutivos e forte pressão psicológica para seguir trabalhando em uma das maiores empresas jornalísticas do Japão.

A Organização Mundial da Saúde (sim, o fenômeno se tornou universal, com média de 750.000 mortes anuais ao redor do mundo) reconhece como parte da Síndrome do Karoshi jornadas superiores a 55 horas por semana e mortes causadas por AVC, colapso mental, suicídio e doenças cardiovasculares. Importante ressaltar que o óbito deve ter acontecido de forma instantânea ou até 24 horas após o início dos sintomas.


Karoshi em Números

2.968. Esse é o número oficial de mortes por Karoshi somente em 2022, segundo relatório oficial do governo japonês. Mais de 8 pessoas por dia! No entanto, segundo o Conselho Nacional de Defesa para Vítimas de karōshi, os números reais podem alcançar 10.000 por ano. Para se ter uma ideia, somente os casos de doenças mentais reconhecidos por sobrecarga laborativa foram de 883 casos em 2024.

O problema é tão presente no Japão que para uma morte ser considerada por karōshi a vítima precisa:

1.        Ter trabalhado 80 horas extras por dois meses consecutivos ou mais nos 6 meses anteriores ou;

2.        Ter trabalhado mais de 100 horas extras no mês anterior à sua morte.

Nesses casos, quando o karōshi é comprovado oficialmente, a família da vítima tem direito a receber do governo US$ 20 mil por ano, e indenização da empresa que pode chegar à US$1,6 milhões. Mas tem um porém: essas indenizações muitas vezes demoram anos para serem pagas, e em alguns casos nunca acontecem.

Segundo pesquisa recente, mais de 25% das empresas japonesas possuem funcionários trabalhando acima de 80 horas extras mensais, e 12% trabalhando mais de 100 horas adicionais. Por mais que as companhias achem que essas horas extras sejam uma vantagem para a lucratividade delas, na verdade todo esse trabalho adicional se mostra contraproducente, pois apesar do Japão ser um dos países que mais trabalham mundialmente, ele é o menos produtivo de todos os que fazem parte do grupo do G7 (formado por algumas das economias mais desenvolvidas no mundo).


Dados e Estatísticas que Mostram as Consequências das Jornadas Exaustivas no Trabalho

1. Casos nos quais foram dadas compensações devido a doenças mentais relacionadas ao trabalho


2. Média de estadia (em dias) em hospitais para cuidados curativos (agudos) em países de todo o mundo nos anos de 2010 e 2022


3. Comparação entre países sobre a média (em dias) da estadia em hospitais


4. Horas de trabalho que são produtivas entre os países do G7

5. Principais setores onde funcionários trabalham mais do que 60 horas semanais

O Que Realmente Causa esse Fenômeno?

Algumas das razões que mais contribuem para a ocorrência do Karoshi são:

  • Cultura de horas extras invisíveis (não registradas oficialmente e muitas vezes não pagas pela empresa). Na maior parte das vezes, essas jornadas são superiores a 80 horas extras por mês;
  • Apesar de terem direito a 20 dias de férias por ano, 35% dos trabalhadores japoneses não os utilizam — e mesmo entre os que tiram folga, a média registrada em 2022 foi de apenas 10,9 dias.
  • Cultura de lealdade extrema, com forte pressão social para não “desistir” – veremos a seguir o caso dos salarymen que ilustra exatamente isso;
  • Transferências de trabalho sem a família; trajetos longos e trens lotados – alguns japoneses relatam mais de 4 horas de transporte público por dia;
  • Falta de sono, alimentação irregular, e ausência de vida social (trabalhando mais de 80 horas adicionais por mês, como arranjar tempo de sair com os amigos, comer saudavelmente todos os dias e priorizar uma boa noite de sono?)

O Olho do Furacão: conheça a dura realidade dos Salarymen

Os salarymen (サラリーマン) são conhecidos como o símbolo da lealdade corporativa. Eles são os típicos trabalhadores japoneses de escritório, dedicando-se literalmente de corpo e alma à empresa. Realizam jornadas extremamente longas sendo na maior parte das vezes com horas extras não pagas; além disso, são obrigados a participar de eventos corporativos após o expediente.

No Japão, a cultura corporativa funciona da seguinte maneira: em 1º lugar no ranking, estão os eventos considerados únicos, como casamentos e funerais. Em seguida, está o trabalho. Os salarymen, por exemplo, colocam a empresa acima da própria saúde, família e vida pessoal (sim, esses estão em 3º lugar no ranking).

O trabalho se torna literalmente um fardo mortal. Mostrar interesse pela vida pessoal prejudica a imagem dos colaboradores, e quando estes não correspondem às expectativas de lealdade da empresa, são ridicularizados e desvalorizados por seus colegas e superiores, e podem ser demitidos.

Infelizmente, apesar das novas leis trabalhistas japonesas, esse sistema segue firme e forte, sendo a principal causa das mortes por karōshi.

Esse vídeo mostra a chocante realidade dos salarymen. Obs.: é de 7 anos atrás, portanto seus dados e estatísticas podem estar desatualizados.


Medidas preventivas na luta contra o karōshi

Após a repercussão de muitos casos absurdos de abuso moral, físico e psicológico que levaram à morte de milhares de japoneses, algumas medidas vêm sendo tomadas desde o aumento de número de casos de karōshi no Japão.

1.        Campanhas como a “Premium Friday” estão sendo adaptadas em cada vez mais empresas (porém ainda em pequeno número): na última sexta-feira do mês, os funcionários têm direito a sair do trabalho às 15h. E, em alguns escritórios, as luzes são apagadas às 19h, para “forçar” os colaboradores a irem embora “cedo”.

2.        Programa Karoshi Hotline: lançado em 1992 por sindicatos e grupos de apoio aos trabalhadores, é uma linha direta de denúncia e orientação para potenciais vítimas e famílias afetadas pelo excesso de trabalho. É gratuito, anônimo e temporário, funcionando entre 1 e 2 vezes ao ano.

3.        O país promulgou uma lei em 2014 com foco em aumentar a conscientização pública, apoiar vítimas e famílias, financiar pesquisas e políticas públicas voltadas à saúde mental no trabalho e coletar e divulgar estatísticas anuais sobre doenças relacionadas ao trabalho.

4.        Stress Check Program (2015): exame psicológico anual obrigatório em empresas com mais de 50 funcionários. Seu objetivo é identificar sinais precoces de estresse ocupacional, permitir que trabalhadores reflitam sobre sua saúde mental e, quando necessário, solicitem consultas com médicos do trabalho. É confidencial e voluntário.


IA no combate ao esgotamento: uma nova fronteira contra o karōshi

Uma técnica recentemente aplicada é o uso da inteligência artificial para detectar e monitorar sinais de esgotamento. É similar ao Stress Check Program, porém nesse caso a IA analisa os padrões vocais para identificar altos sinais de estresse nos funcionários.

Os resultados também são confidenciais, onde a empresa recebe diretamente dados compilados para que possa oferecer suporte personalizado, como acesso a profissionais de saúde mental, terapia do sono, entre outros métodos de alívio ao estresse.

O objetivo dessa inovação é tratar as relações adoecidas dos colaboradores com o trabalho, trazendo mais equilíbrio, cuidado e conscientização entre o profissional e pessoal.


Casos assustadores de karōshi: quando o trabalho ultrapassa todos os limites

Sr. A, 34 anos, trabalhava em uma grande empresa de alimentos. Chegava a cumprir impressionantes 110 horas por semana (mesmo se A trabalhasse os 7 dias semanais, dá quase 16h por dia!). Morreu de ataque cardíaco fulminante. Sua morte foi reconhecida como relacionada ao trabalho; porém, o reconhecimento infelizmente veio tarde demais.

Sr. B, motorista de ônibus de 37 anos, trabalhava mais de 3.000 horas por ano. Nos 15 dias que antecederam seu AVC fatal, não teve um único dia de folga. Sua jornada terminou no volante — sem descanso, sem pausa, sem escolha.

Sr. C, 58 anos, atuava em uma grande gráfica em Tóquio, com carga horária de 4.320 horas anuais (se ele trabalhasse todos os dias do ano, sem nenhuma folga sequer, são mais de 11h diárias!), incluindo turnos noturnos. Morreu tragicamente de AVC. Sua viúva só recebeu a indenização 14 anos após sua morte, depois de uma longa e dolorosa luta judicial.

Sra. D, enfermeira de apenas 22 anos, sofreu um ataque cardíaco fatal. Ela fazia plantões contínuos de 34 horas, cinco vezes por mês. Uma vida dedicada a salvar outras, ceifada antes mesmo de começar a viver verdadeiramente a sua.


Trabalhar 84 horas em 4 dias é humanamente possível? 

Conheça em primeira mão a história de F. Shimizu, de 41 anos, trabalhador de uma rede de lojas de conveniência famosa no mundo inteiro. Em seu relato, ele conta que chegou a trabalhar um total de 84 horas em apenas 4 dias !

O desfecho dessa história é chocante e profundamente revelador. Assista aqui (a partir de 19:50) ao depoimento completo de Shimizu e descubra o preço pago pela exaustão extrema.


 O caso que chocou o Japão e escancarou o preço da lealdade

O caso mais conhecido do Japão ocorreu em 2015, quando Matsuri Takahashi, uma jovem recém-formada de 24 anos, se suicidou após assédio moral contínuo e jornadas exaustivas na empresa onde trabalhava – a Dentsu, uma das maiores agências de publicidade do Japão.

A cultura perversa da empresa incluía as chamadas “10 Regras do Demônio”. Algumas das principais eram:

1.        “Se um funcionário mais velho trabalha até 4h da manhã, os mais novos também devem fazer o mesmo.”

2.        “Se você receber um projeto, não o abandone — mesmo que morra.”

E foi exatamente o que acabou acontecendo! Logo antes do seu suicídio, Matsuri publicou em sua conta do Twitter (atual X) algumas frases perturbadoras (entre elas a citação da abertura do artigo):

“Estou no trabalho 20 horas por dia e já não sei mais por que estou vivendo.”

“Eu quero morrer.”

“Estou fisicamente e mentalmente destruída.”

“São 4 da manhã. Meu corpo está tremendo… Eu simplesmente não aguento mais. Eu vou morrer. Estou exausta.”

Sua mãe, Yukimi Takahashi, denunciou publicamente que Matsuri era instruída a ocultar suas horas extras nos relatórios internos — para que não ultrapassasse o limite de horas adicionais mensais. Na prática, trabalhava mais de 100 horas extras por mês. Tal ocultação é muito frequente, pois as leis trabalhistas no Japão permitiam naquela época um máximo de 70 horas extras mensais, frequentemente superadas pelos funcionários das empresas japonesas.

Qual foi a repercussão do caso de Matsuri Takahashi?

Sua morte gerou uma comoção nacional e forçou o governo japonês a reagir. A empresa Dentsu foi responsabilizada judicialmente, e sua sede chegou a ser alvo de uma batida policial, algo raro em casos corporativos no Japão. Como resposta institucional, o governo criou em 2018 a Lei de Reforma Trabalhista, estabelecendo um limite legal de 45 horas extras por mês, além de reforçar campanhas públicas de conscientização e prevenção ao estresse, como o Stress Check Program citado anteriormente.

O suicídio de Matsuri foi reconhecido oficialmente como relacionado ao trabalho (karōjisatsu*), o que permitiu que sua mãe, Yukimi Takahashi, recebesse uma indenização por meio do sistema nacional de compensação trabalhista.

*karōjisatsu é é o termo usado no Japão para definir suicídios causados por excesso de trabalho e estresse ocupacional extremo. É considerado uma forma de karōshi com origem psicológica, e costuma envolver assédio moral, jornadas abusivas e pressão constante por desempenho.


A vida vale mais que um crachá

O karōshi não é uma tragédia individual. É um fracasso social, institucional e cultural, que só vai acabar quando deixarem de aceitar o inaceitável. O que essas histórias mostram não é apenas uma falha no sistema, mas uma cultura que ainda mede valor humano por produtividade. E enquanto a lealdade pela empresa for mais importante que a vida, o trabalho continuará corroendo até a morte funcionários do Japão e do mundo.

Porém, existe outro caminho! Onde trabalho não rima com sacrifício, e sim com propósito, dignidade e bem-estar. Mas esse caminho só começa quando a pessoa decide que a vida vale mais do que um crachá. Afinal, o trabalho deveria e deve nos fortalecer mentalmente e nos tornar profissionais capacitados, mas também capazes de equilibrar vida e carreira com dignidade. Não nos matar em silêncio.

Afinal, até quando o sucesso será medido pela capacidade de se destruir em nome da empresa?

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Após todo esse conteúdo assombrador, acho mais do que válida a reflexão sobre como cada um de nós está tratando à si mesmo quando o assunto é o equilibrio da nossa vida profissional, pessoal e mental.

Aproveite e deixe sua reflexão nos comentários, quem sabe sirva de inspiração e consideração para outros profissionais?

Até semana que vem, e cuide-se!! (また来週ね。体に気をつけて。)

Magu

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Série: Descobrindo o Japão - Por Dentro da Cultura de Trabalho Mais Intensa do Mundo

Série: Descobrindo o Japão - Bem-vind@ as Black Companies: o lado mais sobrio e perverso do trabalho no país

Inside Japan - Welcome to the Black Companies - The Darkest Side of Japanese Work Culture